sexta-feira, 4 de julho de 2014

Sentir sede: também é um problema com a bebida

A Sónia é para mim uma inspiração. Vejo nela tanta pedra no caminho, tanta linha descosida e a maior constante no meio das suas dificuldades é a sua força. A sua essência não quebra. O seu sorriso sobrevive ao que muitos nunca aguentariam sequer sonhar. E para mim é um farol no meio de um mar de desânimo que povoa neste universo renal.

No outro dia ela falou dos líquidos e do seu problema com a bebida ( http://starlightsonia.wordpress.com/2014/07/02/confesso-tenho-problemas-com-a-bebida/ )

Conheço bem esse karma. Essa sensação eterna de sede e angustia entre o querer e o sofrer. Há pessoas que sendo doentes renais e mesmo não sendo doentes renais, sentem que as agulhas, as 4h x 3 e todas as dores e cansaço físico são o pior. Enganam-se. O limitado é o pior.

Sabem, quem não passar por isto claro, sabem ou conseguem imaginar o que é viver controlando os líquidos que bebem? Acho que não entendem.

Como explicar…

Eu de inicio achava, "ok.. controlar o que bebo.. ok. Vai custar mas eu consigo". Então enchia uma garrafa de 500 ml e obrigava-me a beber apenas aquilo e só de si era um sacrifico muitas vezes não respeitado. Depois chegava a maquina de diálise (isto logo no inicio) e ouvia a enfermeira dizer quanto eu levava e ouvia o que os meus colegas levavam e pensando que a diferença teria algo a ver com a idade ou o meu peso físico.. "ok.. siga…"

Depois sentia no corpo, na pele. Sentia o corpo a sofrer á medida que a maquina retirava o que eu levava a mais. E aprendi. Aprendi que o que ingerimos de líquidos não é o que bebemos. Se já custa controlar aquilo que bebemos a um limite irrisório, imaginem controlar tudo.


Tudo sim. Porque no nosso corpo tudo se decompõe e tudo, seja desde uma torrada até uma fatia de queijo ou um pedaço de fruta, tudo tem água. Eu comecei então a descobrir que o erro que eu colocar na boca, sólido ou liquido, será o castigo que o meu corpo sentirá. Pior. Descobri que maltratava o meu coração com o inxa desinxa que o aumento de líquidos e peso causavam entre diálises. E treinei-me.

Treinei-me a comer e pesar-me. Pesar a comida. Descobrir quanto é que uma fatia de pão pesava em mim depois de ingerido. Descobri quanto de líquidos perdia nem que fosse a suar ao subir as minhas escadas e o quanto perdia numa noite de sono bem dormida. E aprendi. Aprendi porque não queria sofrer e queria sobreviver o melhor que conseguisse. Aprendi porque esta doença apanhou-me cedo e ainda que saiba que a minha longevidade esta comprometida, queria fazer o melhor possível pelo futuro que tivesse um dia.

E no verão comia gelo e andava a seguir a beber mais liquido do que devia. Suar, suar, suar! Se ele não sai por um lado, sai por outro. E aprendi quanto conseguia tirar sem ter mudanças bruscas de tensão, tonturas, vómitos, cansaço, enjoo, mal-estar e cãibras. Aprendi e mentalizei-me. Eu que adorava agua e fruta, treinei-me q nem um cão para nem sentir saudades. Não me proibi porque considero que um “NÃO” é porta aberta a um “TENHO QUE TER”

Mas ainda me lembro do que era no início comer e fechar a boca porque sabia que mais era sinal de ter que roubar uma refeição ou sofrer na diálise. Quantas vezes comi uma fatia de melancia ridiculamente fina e era esse o meu jantar. Aprendi a comer pouco e depois não custava tanto, mas ate me habituar, era sentir sede e fome, mas acima de tudo sede. Abdicava lindamente do almoço se pudesse beber só água.

Transplantada ou não, não me esqueço nem esquecerei disso.

Transplantada ou não, não estou longe das memorias e emoções que quem ainda esta ligado a maquina vive. Recordo-me vivamente de cada vez que passei mal, cada hipotensão, cada vómito, hemorragia, hematoma, dor lancinante ou ida de emergência para o hospital. Lembro-me de cada companheiro de turno que morreu, das conversas tristes, das dúvidas, medos, magoas e rancor com a vida. Das brincadeiras, palhaçadas, risos e bons momentos. Das forças e dos silêncios. Lembro-me e lembrar-me-ei sempre.

Repito, transplantada ou não, estou aqui ao lado de quem esta na máquina de diálise a repetir “só mais 10 minutos, já não custa nada!” que era o que eu dizia a quem á minha frente já sofria para ser desligado e eu vendo 45 minutos, mentia e desconversava para que o tempo voasse.


Pudesse eu fazê-lo a cada um de vocês e juro de coração que o faria. :(

1 comentário:

  1. Eu não consigo sequer imaginar... O meu pai foi recentemente operado ao coração e no primeiro mês teve de controlar a água que bebia, 1,5L tinha de durar x tempo. A mim, que ando sempre cheia de sede, parecia-me cruel e doía-me quando ele dizia que já só podia beber mais um copo de água até ao dia seguinte. E isto era só com a água! Não imagino o que será "pesar" todos os líquidos que se ingerem. Só uma pessoa com imensa perseverança e coragem é capaz de tal. Parabéns e que continue tudo a correr bem :)

    ResponderEliminar

Obrigada :)

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...