sexta-feira, 19 de março de 2010

A minha vida como uma doente renal crónica

Inocentemente pensei que escondia uma gravidez tão ansiada por ambos. Mal eu sabia que a cada momento que passava era cada vez mais cúmplice de uma doença velhaca e falsa. Comecei por deixar de ter o período no final de Dezembro, coincidindo de uma forma diabólica com uma possível concepção no ano novo. A minha alegria em 3 meses se tornaria num pesadelo. A seguir vieram os enjoos, que olhando agora para trás, já existiam mesmo antes. E eu que os ignorei. Ignorei teimosa e estupidamente os avisos que o meu corpo me dava. A seguir foi a falta de apetite, o facto da comida me saber a diferente enjoar certos cheiros. Acho que psicologicamente muitas das minhas reacções foram psicossomáticas pela ideia de estar grávida. E eu que me mantinha alegre cada dia que passava pois era mais um dia perto do dia D do meu futuro filho. O nosso filho. Já pensava se a barriga que crescia era mais puxada para fora e sendo assim menino ou se estava mais arredondada e assim menina. Coisas de velhas, mas verdadeiras á séculos. Aguentava os enjoos e teimosamente dizia a quem me via pálida e fraca que estava bem, era da gravidez, que iria ao médico sim, mas apenas ao terceiro mes era um medo muito grande, então fugia da ideia de ir ao médico tão cedo. Tentava não azarar esta gravidez, esconde-la o melhor possível para que nenhum mal a encontrasse. Tentava na minha inocência estúpida ser uma boa mãe. Comia muita fruta e beber muita água. Andava a envenenar-me aos poucos.

As idas para o trabalho eram um pesadelo. Mal conseguia dar 5 passos sem sentir que ia morrer, que o meu coração ia explodir e que o mundo girava no sentido oposto. A mala que normalmente nem ia muito cheia, parecia agora cheia de pedregulhos. E o regresso a casa era ainda pior, sendo que a ideia de subir a rampa da minha rua era como subir o Evareste, e mais do que muitas vezes gastei dinheiro que não tinha em táxis só para fazer o percurso da estação ate casa. E não comia, pois o apetite era nenhum, só dormia e sofria com um sabor a fogo e acido na garganta. A minha língua toda branca e a minha pele pálida.

Esperava pelas férias marcadas no final do mês de Março para começar o inicio das idas ao médico e do acompanhamento da minha tão protegida gravidez. Tinha o teste da farmácia em casa fazer, mas a certeza de que era uma gravidez o que causava todos estes sintomas… nunca o cheguei a fazer ate ser tarde demais. Não aguentava mais e a 8 de Março lá fui eu ao centro de saúde ver o meu médico de família para algum alívio para o estômago e para uns nódulos dolorosos que me tinham aparecido entretanto na perna esquerda. Ia começar o acompanhamento. Estava na realidade a dias de conhecer a minha amiga velhaca.

Primeira coisa que o doutor disse foi que não ia mais trabalhar e que não o faria para o restante tempo de gestação. Senti o alívio de não ter que fazer o percurso casa-trabalho que tanto temia. Fiz as contas a vida e financeiramente era suportável. Deu-me 4 dias de baixa e um exame de sangue para comprovar a gravidez e poder depois passar-me a baixa maior por gravidez de risco. Sou hipertensa e parecia um cadáver exausto. Até sentar-me era um esforço. Falar também. Fui fazer o teste, dar o sangue e recolher o resultado. Dia 11 estava pronto o resultado. Quis uma intuição ou receio feminino que eu fizesse o teste da farmácia por descargo de consciência na madrugada do dia 11 de Março. E o resultado deu negativo. Mas não foi um negativo possível, mas um bastante visível. Apenas uma linha vermelha no lado do C. Significado: Negativo. Não entendia. Não fazia sentido. Mas ainda assim pensei que o facto de não andar a comer nada de jeito e de ter feito o teste ao final do dia e não com a primeira urina da manha… era esse o motivo. Só podia.

O resultado do teste d sangue dizia não grávida.

Senti-me ferida. Ele sentiu-se ferido e magoado. Sentimo-nos confusos e amargurados. Então que raio tinha eu? Estava doente a serio. O médico de família não sabia descortinar os meus sintomas imensos e caóticos. Um historial de ma disposição com quase 3 meses. Encaminhou-me para o hospital de cascais. O novo. Aquele que é grande e lindo e o qual preferia nunca ter conhecido na vida.

Contar todo o historial. Mil e um exames, tira aqui, pica ali, xixi acolá, deita aqui, despe, coloca bata e liga cateter. Liga cateter aonde? A máquina de hemodiálise. Hemodiálise? O que é isso? Ah, você esta com uma grande anemia. Eu sei, não consigo ter nada no estômago para alem de algumas bananas e agua e mesmo isso vómito. Tenho ate tomado Centrum Materna para receber mais cálcio e ferro mas não tem ajudado grande coisa. Esta maquina vai dar-lhe 3 unidades de sangue e f azer o processo de hemodiálise. Mas o que é a hemodiálise? E não me lembro de mo terem explicado, estava demasiado fraca. Mas lembro-me da cara dele quando eu lhe repeti o que os médicos tinham dito. Hemodiálise? Sim, ou diálise, não sei bem. É basicamente sangue para a anemia. Mas ele muito preocupado foi falar com os médicos. E voltou com uma cara que demonstrava que já tinha sido apresentado a minha velhaca amiga.

A porcaria de veias e a maquina que apita a noite toda. Não mexa a perna. Mexeu. Não mexi. Mexeu. A máquina avariou de vez. Fui enviada para o hospital da especialidade, santa Cruz em Carnaxide. Cá me explicaram o que é hemodiálise e fui apresentada a minha amiga.

O dicionário diz que hemodiálise é:

E nesse instante eu tornei-me numa doente renal crónica.
Pensava-se que haveria hipótese de algum tratamento que pudessem colocar os meus rins a funcionar de novo porque a maquina e os técnicos que me fizeram a eco aos rins no hospital de cascais dizia que os meus rins eram de um tamanho saudável 12. Na realidade um é 8 e o outro é 9. Mirraram. Acontece a imensas das pessoas que estam comigo nesta enfermaria. Acontece a milhares de pessoas pelo mundo. Somos doentes renais crónicos. Precisamos de hemodiálise para fazer o que os rins não fazem. Temos cateteres e fistulas para nos ligarmos á máquina de hemodiálise 3 vezes por semana e retirar os líquidos que os nossos rins não processam. Entrei anémica e com o nível de creatinina a 24, sendo que uma pessoa saudável deve ter 0.9. Vinha envenenada.

Desde que comecei a hemodiálise já perdi 10kg só em líquido que trazia acumulado, que o meu corpo não expelia. Eu bebia 3 litros de água por dia e não urinava nem um terço. Como nunca tive problemas em urinar, nunca achei que fazia pouco, nem ardia nem cheirava muito mal ou tinha uma cor forte. Nunca pensei ter problemas com os rins. O que eu tinha era problemas de digestão. Aqui estava a velhaca da minha amiga. É assim que esta doença actua.

E foi assim que eu, que nunca tive nenhuma doença mais complicada do que constipações e a minha já familiar e controlada hipertensão, me tornei uma doente renal crónica. Mais uma na lista de espera por um transplante de rim. Por um dador compatível. Por uma luz ao fim do túnel. Ele é dador universal e esperamos que seja compatível. Eu sou tipo A Rh negativo. Todo o processo demora pelo menos 6 meses.

Sexta dia 20 de Março vou para casa. Adaptar-me a um corpo, a uma rotina, a uma nova vida que será a minha. Hemodiálise 3 vezes por semana na clínica, 4 horas ligada a maquina. Muito poucos líquidos, pouca água, cuidado com os alimentos, especialmente a minha tão adorava fruta.

E no meio de tudo isto ainda não chorei. Não posso. Se chorar vou-me abaixo e não sei se conseguirei voltar a achar forças. O caminho agora é em frente. Aprender o máximo sobre o inimigo e mostrar-lhe que sou mais forte do que ele. Porque sou. Estou ferida mas não vencida.
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