Eu chego a casa. Olho para o relógio, tenho X de minutos para mudar de roupa, ir ao computador e sair para apanhar o autocarro para a clínica. Olho de novo para o relógio, tenho apenas X de minutos para mudar de roupa a correr, sair a correr e apanhar o referido autocarro.
Chego a clínica. Cumprimento as meninas á entrada, e os doentes que partilham o mesmo turno que eu. Mais doentes chegam e quando chega a X hora, entramos por ordem de chegada.
Entro e vou pousar a minha manta no meu cadeirão. Numero 2. Vou-me pesar e vou-me sentar. Sento-me. Sento-me e tapo-me. Espero pela almofada que me trazem e encosto-me para trás.
Vão entrando mais doentes que também eles teem o mesmo ritual, pesagem, sentar, ajeitar e encostar. Vamos falando, enquanto os enfermeiros vão cumprimentando e começando a ligar-nos. As auxiliares ajudam a sentar, tapar, colocar a braçadeira.
Colocam-me a braçadeira para medir a tensão arterial e a enfermeira chega para me ligar. Tiro a bolsa do cateter de dentro do soutien enquanto ela coloca o material para me ligar disperso para usar os pensos, os tubos de soro para limpar o cateter e prepara-lo para ligar a máquina.
Ela remove-me os pensos do cateter usando spray e expõe os dois tubos que entram dentro do meu peito. Raramente olho, até porque quando ela esta a preparar o material para me ligar, coloca-me uma mascara para não contaminar o cateter com qualquer germe, uso eu e ela. Mas quando eu olho, vejo aqueles tubos que entram por um buraco que sei que no dia em que forem tirados, terá que ser dilacerado para os arrancar de dentro de mim. São parte de mim, parte de mim que não quero e ainda assim preciso.
Ela liga-me, programa a maquina com os valores do meu tratamento e o peso que vai ser tirado naquele tratamento. E começa. Começa o relógio. Amarelo no tempo que há para passar e verde a parte de tempo já concluída. Começam as 4horas da minha vida. Da minha nova vida. Do resto de vida que me resta. Da última vida que terei secalhar.
Encosto-me mais para trás e tento não pensar que estou ali. Converso, faço conversa. Vêem os lanches, que dada a hora a que são dados, são como um substituto de um almoço que nunca acontece nestes dias.
Lancho e tento dormir. Vejo TV e tento dormir. Dormir e fugir, desaparecer desta realidade. Não pensar em nada. Não sentir.
Há dias em que acordo e é só desligar e tentar que a tensão não seja hipotensão e com isso o mesmo de passar mal. Outros dias há em que nunca durmo e fico o tempo todo a tentar inventar o que pensar para não pensar.
Dormir ou não dormir, e o relógio vai andando, menos 3 horas, menos 2 horas, menos 1 hora, menos 30 minutos, menos 15 minutos, e vêem-me dar ferro através da máquina. Menos 5 minutos e voltam para me desligar. Entre todo este tempo a máquina vai apitando e registando a tensão arterial que vai de muitíssimo alta para baixa e com isso vem a sensação de frio e cansaço por todo o corpo.
A enfermeira volta a colocar-me a mascara e a abrir o kit para me desligar. Abre os tubos que me ligavam a máquina e coloca nos meus tubos a heparina que ficará até á próxima sessão de tratamento e fecha-os. Coloca o saquinho aonde entram os tubos e cola-o como um penso á minha pele. Tira-me a braçadeira e confirma a última tensão arterial.
E vou-me endireitando, devagarinho para não ocorrer nenhuma hipotensão mais drástica. E espero até não me sentir tão tonta, tão cansada, tão fraca. E passam 10, 15 minutos. E finalmente arrisco e levanto-me. Quando a sala não gira, levanto-me e vou-me pesar para confirmar o peso tirado durante o tratamento. Quando a sala gira, sento-me e espero mais tempo.
Despeço-me de todos até ao próximo dia e saiu. Vou vestir o meu casaco aos balneários e calçar os meus sapatos e vou embora. Espero o meu transporte mandado chamar pelas meninas á recepção, as administrativas, e espero para chegar a casa.
Chego ao meu prédio e tento não pensar no cansaço e fraqueza que me faz sentir menos de metade de mim. Entro no elevador já a sentir-me exausta, muitas vezes sinto que vou desmaiar no elevador. Aquela sensação de subir faz-me baixar a tensão que só por si já vem mais baixa do que o meu corpo esta habituado. Olho ao espelho do elevador e tento focar um ponto no meu rosto para não pensar em como me sinto mal e fraca, pelo menos até chegar a casa. Só até casa, penso. Aguenta-te até casa. 4º andar e saio. Abrir o raio da porta que nem sempre consigo e muitas vezes penso que não vou conseguir e cair ao chão.
Entrar e despachar-me a deixar-me cair na cama ou no sofá e voltar a sentir-me melhor. A tensão a normalizar e o mal-estar a passar. Olhar o relógio e pensar que daqui a 1 dia irá acontecer tudo de novo. Até ao dia em que já não seja preciso ou eu já não aguente.
E as pessoas dizem-me que não devo pensar sempre na minha doença. Falam de boca cheia porque teem a vida que querem. Porque por mais que se queixem de uma dor ou o que seja, não vivem em conformidade com uma máquina. Porque não precisam de fazer o que eu faço para viver. Porque não passam pelo que eu passo. Porque não se sentem como eu me sinto. Porque não choram sozinhas durante a noite.
Porque não sofrem em silêncio. Porque não se sentem insignificantes e vazias. Porque não são eu e ainda assim sabem exigir, gabar-se e cantar juízos. Porque não vivem com a ideia de que não existem já como pessoa e não sentem o sofrimento e a solidão que eu vivo por dentro.
E é isto o que eu não digo quando me perguntarem como vai isto ou como estou.
Eu simplesmente repondo: bem; na mesma; tudo Ok. Pra quê dizer tudo o resto? Interessam-se mesmo? Querem poder demonstrar pena ou ditar juízos? Dispenso. Posso já não ter nada de mim, mas não preciso da pena de ninguém e ainda tenho o meu orgulho. Agradeço todo o carinho e atenção, mas neste momento sinto-me numa merda, uma merda e simplesmente não quero que me façam sentir ainda mais insignificante ou zero do que já me sinto.
Era só isto que tinha para dizer.
Tania